Valter Hugo Mãe / As bibliotecas
As bibliotecas são como
aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem está a
ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro
pode ser convocado à força dos seus livros. Todas as coisas do mundo podem ser
chamadas a comparecer à força das palavras, para existirem diante de nós como
matéria da imaginação. As bibliotecas são do tamanho do infinito e sabem toda
a maravilha.
Os
livros são família direta dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros.
Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis
enquanto pairam, como se entrassem para dentro do próprio ar, a ver o que
existe dentro do ar que não se vê.
O
leitor entra com o livro para dentro do ar que não se vê.
Com
um pequeno sopro, o leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro
mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da
biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das
bibliotecas.
Os livros são toupeiras, são minhocas,
eles são troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros
escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde
o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam furos na
cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram, choram,
imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem como crianças. Os livros
têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir.
Os
livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e baixo, o esquerda
e direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta
curiosidade. Querem ver e contar. Os livros é que contam.
As
bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas
é a ingenuidade dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas
contínuas e soam trombetas a cada instante e há sempre quem discuta com
fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa
confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm
memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se
encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão
oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes.
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Os livros oferecem o
que são, o que sabem, uma e outra vez, sem refilarem, sem se aborrecerem de
encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca
pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se a surpreender. Os
livros divertem-se. As
pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três
centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a
fazer a coisa certaLer
livros é uma
coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não
têm vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam
mais altas. Depois da leitura de
muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende
como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores
são tão obstinados com a leitura que nem acendem a luz. Ficam com o livro
perto do nariz a correr as linhas muito lentamente para serem capazes de ler.
Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo. Leem claramente o humor
dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que
seja um silêncio muito baixinho. Os melhores leitores, um dia, até aprendem a
escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por
fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Dão palavras que fazem
sentido e contam coisas às outras pessoas.
Já vi gente a sair de dentro dos livros.
Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das palavras e vestem-se à pressa
com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes.
Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar.
Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar despacho. Sim,
compete-nos pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela
escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.
Este
texto é um abraço especial à biblioteca da escola Frei João, de Vila do
Conde, e à biblioteca do Centro Escolar de Barqueiros, concelho de Barcelos.
As pessoas que ali leem livros saberão porquê. Não deixa também de ser um
abraço a todas as demais bibliotecas e bibliotecários, na esperança de que
nada nos convença de que a ignorância ou o fim da fantasia e do sonho são o
melhor para nós e para os nossos. Ler é esperar por melhor. J
In jornaldeletras.sapo.pt , 15 a 28 de maio de 2013
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